sexta-feira, 24 de junho de 2011

A terceira escravidão

Primeiro eles privatizaram o chão. Pegaram a terra e as árvores e as águas e disseram que eram deles. E a gente passou a comprar o que antes era Natureza: as frutas, a água, a carne. E o próprio chão. Quem não tinha terra não tinha nada; não era gente. A gente virou servo. Gente virou propriedade, era só parte do chão que eles possuíam. Até a inocência de nossas filhas era deles.

Depois eles vieram com uma tal de Indústria. Máquinas, vapor e trabalho. E a gente virou operário. Expulsaram a gente da terra; incharam as cidades; nos trancaram nas fábricas. Gente virou mão-de-obra. Uma mercadoria a mais nas prateleiras do mercado.

Agora eles chegam e nos surpreendem outra vez. Estão abolindo a propriedade privada das coisas materiais. A gente não tem mais telefone; não tem mais computador; não tem mais carro. Eles estão privatizando o "uso". Gente virou consumidor. Para viver só é preciso pagar uma taxa mensal. A assinatura da tevê; o leasing do carro; a mensalidade do telefone; o plano de saúde; o seguro de vida.

Primeiro perdemos a terra para eles. Depois o nosso trabalho. Agora, estamos perdendo nossa existência. Um dia, farão comodato de nossa alma.


(Este texto foi publicado originalmente, com algumas diferenças, em 2002, na coluna Deu na Lata do site www.sanatoriodaimprensa.com.br, sob o pseudônimo de Solinovsky).

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

O Gato


Ela disse pra ele naquela noite:

- Não fique assim... Você vai encontrar alguém... 
Acredite em mim: você é um gatinho...

- Sim. Um gato feio...


(Publicado originalmente em 18.11.2003, em konohito.blogger.com.br)

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Quatro meninas


Tem quatro meninas
no meu coração,
mas duas são comprometidas
e duas são novas demais.

As quatro são muito bonitas,
mas duas são mais kawaii.
Duas me deixam louco,
as quatro me deixam em paz.

Duas se fazem de bobas,
duas me fazem sonhar.
As quatro me fazem de bobo:
as quatro fingem me amar.

(Publicado originalmente em 11.09.2003, em konohito.blogger.com.br)

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

O Homem duplicado


Ele nem lembrava mais há quanto tempo usava aquele bigode. Nem sequer sabia por que o deixara crescer. Talvez para fazer o visual machão da época. Talvez para esconder alguma cicatriz.

Como era seu rosto sem bigode? Sempre lembrava dele assim, por trás daqueles pelos escuros. Não tinha muitas fotos. E em todas tinha bigodes.

Os amigos brincavam com ele. Falavam que bigode era coisa de gay; no máximo, coisa de metrossexual. Mas ele não ligava. Por que não arriscava tirar o bigode? Ficaria mais jovem, possivelmente. Ficaria mais clean.

No fundo ele também se perguntava por que não arriscava. Bigode cresce bem rápido. Se não gostasse do que visse, era só deixar crescer de novo.

Um dia a curiosidade foi maior do que o medo. Não se preocupou com a cicatriz, com a imagem, com o que iriam pensar. Tirou o bigode. Queria ver quem estava ali detrás. Queria ver quem era esse outro que se escondia por trás daquele antiquado ornamento facial.

E veio o choque. Por trás do bigode estava ele! Mas um outro ele. O ele que ele queria esquecer.

Não soube suportar o choque de se ver no espelho, o duplo de outra pessoa que era, mas ao mesmo tempo não era, ele.

Dois dias depois cometeu suicídio.

Isso foi o que todos pensaram. No fim, só ele mesmo sabia que a verdade era outra: ele matara o intruso.


(Publicado originalmente em 19.01.2005, em konohito.blogger.com.br)

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Certezas

Quando ela achou melhor dar um tempo, ele já sabia que ela iria voltar para o outro.

Não que a paixão tivesse acabado, não. O tempo era justamente para amenizar a dor. O amor, é que nunca tinha havido amor.

Ele não fez que nem o outro. Não chorou, não lembrou dos dias bons, não mandou cartas.

Um dia disse a ela Você nunca me quis de verdade. Você apenas me usou para ter certeza de que era dele que você gostava. Ela não respondeu, pensativa.

Prometeu que ele seria sempre um amigo. Que era especial. Que não sofresse com a separação necessária.

Não se viram por quinze anos. Ela casou, teve filho.

Um dia se encontraram num bar: Ei, cadê você? Sumiu... Ooi, tudo bom? Tudo bom.

E isso foi tudo.


(Publicado originalmente em  28.12.2008, em konohito.blogger.com.br)

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011


Ninguém pode dizer que eu não busquei a Deus.

Muitas e muitas vezes bati à porta da casa do Senhor. Ele nunca estava.

Ou mandou dizer que não estava.

Um dia, cansado, desisti. Mas deixo a porta da minha casa sempre aberta, se um dia por acaso Ele resolver aparecer.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

No salão azul



Era um jogo entre os dois. E ele já tinha jogado esse mesmo jogo várias vezes, com várias delas.

Seu lance era estudado, pensado, cauteloso. Sabia que não poderia partir para um lance direto, uma aposta de tudo ou nada. Cacife baixo, é preciso ir com calma.

Fez uma jogada sutil; parecer que ia por outro caminho, nenhum interesse à mostra. Jogou como quem apenas avança uma casa, faz um descarte de rotina, arrisca um número qualquer.

Mas ela era mulher. E reagiu como rainha da sutileza.

Como quem nem percebeu a jogada, num lance rápido desmanchou toda a sua manha, sua estratégia de bicho miúdo.

E ele entendeu que perdera. Como perdera outras vezes. Com várias delas.


(Publicado originalmente em 13.06.2006, em konohito.blogger.com.br)

Irmão lobo



E de dentro do lobo, o Homem tirou o cão. E do cão fez muitas raças.

E fez as raças grandes e as pequenas, as mansas e as ferozes. Pois do lobo o Homem tirou o galgo e o mastim, o pastor belga e o buldogue, o pinscher e o terrier. E tirou o beagle, o terranova, o dinamarquês e o de Pequim. Tirou pastores e cães de guarda, cães de fila e de companhia, apontadores, boieiros e sabujos.

E tirou o akita e o daschshund, o poodle e o rottweiller; o pequeno chihuahua e o elkhound; o cocker spaniel, o cão maltês e o grande São-Bernardo. Tirou o boxer e o ovelheiro gaúcho. Tirou o collie e o landseer, o braco alemão e o cão de água português.

E todos eles moravam no lobo. E todos eles o Homem tirou de lá.

E nunca mais esteve só.


(Publicado originalmente em 26.06.2006, em konohito.blogger.com.br)

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

A Dor


As nuvens estavam gordas e escuras. Andavam lentas pelo céu, onde a tensão inexplicável parecia fazer o ar crepitar.

Um flash de relâmpago iluminou o mundo, mas foi um som de montanhas desabando que rompeu a calma que já estava por um fio.

Respondendo ao trovão, as nuvens se romperam e fizeram descer uma água grossa e ruidosa que rolou pelas ruas e molhou as casas e escureceu ainda mais o dia.

Aquele choro rasgado durou muitas horas e, quando por fim se desfez numa chuvinha rala e simpática, fez surgir um mundo novo, limpo, de alma lavada, sem pecados nem crimes.


(Publicado originalmente em 21.03.2005, em konohito.blogger.com.br)

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Sombra preta


O ciúme entrou como um miasma pelas frestas da porta e invadiu tua sala, teu quarto, teus pulmões.

Seu odor acre ardeu dentro de ti e trouxe um gosto ruim à tua boca.

Mas o ciúme não te fez injetados os olhos, não afiou as tuas unhas nem reclamou o sangue que as traições cobram como tributo.

Pois o ciúme não se fez em ira.

O vinho não virou vinagre mas o ciúme, como um santo ao contrário, o transformou em água e foi como se um ar novo invadisse a casa e arejasse a tua alma e te deixasse em paz.


(Publicado originalmente em 08.01.2005, em konohito.blogger.com.br)

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Interno

"Durante um ano da lua, fui declarado invisível."
- A Loteria de Babilônia, Jorge Luís Borges

Sou um espectro, vagando entre mundos aos quais não pertenço por inteiro.

Passo entre os vivos arrastando minhas correntes. Eles me vêem, me ouvem, mas não podem me tocar.

Sou uma alma apenada.

Cumpro meu tempo em regime fechado em meio à multidão.


(Publicado originalmente em 18.03.2006, em konohito.blogger.com.br)

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Ressaca

Acordou com aquela dor de cabeça. Ressaca da porra.

Virou-se pro lado e deu de cara com aquela cara branca de olhos fechados. De início -olhos semicerrados-, achou que estivesse imaginando coisas mas, de olhos bem abertos, o rosto daquela mulher branca continuava deitado ao seu lado.

Caralho. A ressaca era maior do que pensava.

Virou-se de volta, olhou o rádio-relógio. Dez horas. O trabalho já era. Nem pensar em chegar aquela hora com os olhos vermelhos e a cara de morto-vivo que devia estar.

Tentou lembrar com terminara a noite, mas aquela dorzinha nojenta na nuca não ajudava.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

A Menina do domingo


Havia magia naquela manhã de domingo -ou talvez fossem apenas os metabólitos do álcool da noite anterior que ainda circulavam no meu sangue e teriam aguçado minha sensibilidade- , mas o fato é que quando abri a janela do apartamento, do outro lado da rua eu avistei a menina mais linda do mundo.

Não vou dizer que naqueles poucos instantes em que lhe invadi a privacidade, algo envergonhado, possa ter analisado cuidadosamente todos os detalhes de sua anatomia. Tampouco quero fazer crer que a comparei em algum maravilhoso banco de beldades, perdido entre meus neurônios, com todas as mulheres lindas que já passaram diante de meus olhos. Mas a certeza que tive de que ela era a mais linda do mundo foi tão instantânea e tão certa que não pode haver dúvida: eu realmente estava olhando para a menina mais linda do mundo.


quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

O Estrangeiro


Houve um tempo em que vagávamos livres pelas ruas, quando as preocupações diárias não passavam de monstros no armário e ameaças do porvir. Era um mundo de coisas simples e verdades eternas. Não era um mundo de felicidade, mas tínhamos a força da imaginação para enfrentar as fúrias e os dragões.

Esses foram dias em que a felicidade era apenas um sonho entre tantos que estávamos construindo sobre as dores do dia-a-dia.

Houve um tempo em que as dores eram maiores que a magia e já não éramos tão fortes para subjugá-las como antes. Eram novos tempos, onde a realidade crescia e tomava outros feitios, mas ainda éramos capazes de vivê-la e de usar a nossa força para transformá-la. Era tempo de sofrer e de descobrir no sofrimento uma outra forma de sentir.

E esses foram dias em podíamos ter sido felizes.
Depois houve um tempo em que o próprio tempo pareceu parar. E já não tínhamos nem a fantasia nem a dor nem a inquietude para enfrentar o mundo. Rotina e falta de sonhos. E a vida passando por nós com sua indiferença que beira a impiedade. Já não sentíamos, não desejávamos. Vivíamos, apenas, sobre os escombros do que deveria ter sido a nossa felicidade.

E esses foram dias em que a felicidade nos visitou. E a deixamos partir.

Mas a barca da vida leva a portos estranhos. Uma pequena brasa no meio das cinzas reacende a fogueira e nos vemos de novo vivos. Nos encontramos então como estrangeiros em um novo mundo, reaprendendo a viver, buscando construir outros sonhos em terras que não nos pertencem.

E esses são dias em que a felicidade se mostra entre espelhos e já nem sabemos o que é real.


(Publicado originalmente em em 05.12.2006 em konohito.blogger.com.br)