sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Ressaca

Acordou com aquela dor de cabeça. Ressaca da porra.

Virou-se pro lado e deu de cara com aquela cara branca de olhos fechados. De início -olhos semicerrados-, achou que estivesse imaginando coisas mas, de olhos bem abertos, o rosto daquela mulher branca continuava deitado ao seu lado.

Caralho. A ressaca era maior do que pensava.

Virou-se de volta, olhou o rádio-relógio. Dez horas. O trabalho já era. Nem pensar em chegar aquela hora com os olhos vermelhos e a cara de morto-vivo que devia estar.

Tentou lembrar com terminara a noite, mas aquela dorzinha nojenta na nuca não ajudava.

Não costumava levar mulheres pra casa. O povo do condomínio devia achar que ele era viado, mas nunca fora um grande conquistador e as paqueras eventuais normalmente acabavam num motel. Nunca encontrara a mulher pra levar pra casa. E agora aquela dormia ali do seu lado.

A nuca doía. Todo mundo tinha dor de cabeça nas têmporas, na fronte, mas ele não. A ressaca doía sempre na nuca. Nunca entendera por quê.

Virou-se devagar pra olhar de novo a mulher. Continuava no mesmo lugar, de olhos fechados. Devia ter sono pesado. E era bem branca mesmo. Um rosto bonito, mas de um branco doentio.

Ele não escolhia as mulheres pela cor, ou pela beleza. Procurava nelas um plus, um algo mais que as diferenciasse das outras mulheres. Podia ser uma perninha grossa, ou a sobrancelha reta, ou uma voz rouca, mas gostava de estar com alguém que não fosse apenas mais uma. Talvez fosse por isso que vivesse tão só.

Imaginou o que o teria feito escolher aquela moça branquinha, mas a memória estava zerada pelo álcool. Aliás, não seria ela que o teria escolhido? Mas por quê? Era tão sem atrativos. Suas paqueras precisavam de dias ou semanas para funcionar. Precisava fazer a menina conhecê-lo primeiro, pra então exibir suas qualidades, antes que ela caísse em seus braços.

Era assim: conquistava pelo que ele era, nunca pela aparência, tão insossa.

A sede apertou. Lentamente, pra não incomodar, escorreu pra fora da cama e caminhou silenciosamente até a geladeira. A água desceu gelada. Lembrou-se que alguém havia dito que as chances de se ter uma trombose de ressaca, pela manhã, eram maiores, pois a desidratação do álcool engrossava o sangue. Tomou mais um copo d'água.

E nada de lembrar como acabara aquela farra de ontem.

Ao se levantar da cama não vira vestígios de camisinha. Nem uma embalagem rasgada. Com certeza, não fizera sexo com ela. Nunca se arriscava com mulheres que não conhecesse muito bem. Nem morto de bêbado. Mas, se não rolara sexo, o que ela fazia ali?

Foi até a sala e deitou-se no sofá. Ia ser difícil voltar pra cama sem acordar sua parceira, mas o sol da manhã era incômodo demais pra cochilar ali. Anotou mentalmente, pela bilionésima vez, para providenciar logo as persianas da vidraça da sala.

Voltou pro quarto. Ainda não estava suficientemente bem pra considerar-se desperto. Precisava de pelo menos uma horinha mais de sono.

Com muito cuidado, começou a se enfiar de novo nos lençóis, evitando fazer movimentos bruscos pra não despertar a moça que dormia ainda na mesma posição. Mas não conseguiu evitar que seus pés tocassem os dela.

Gelados.

Os pés da mulher estava frios como uma lajota cerâmica.

A primeira reação foi de susto. Depois, de confusão. A noite não tinha sido tão fria, por que aqueles pés estavam tão gelados? Talvez ela não estivesse passando bem. Pressão baixa, sei lá.

Levemente, tocou o ombro frio da moça e a sacudiu também de leve: Moça, acorde. Tudo bem com você?

Não terminou a última frase e foi o seu coração que gelou. A moça tombou de costas na cama e só então ele compreendeu por que aquele rosto era tão branco: ela estava morta.

Meu deus-- Pulou da cama, cheio de horror. Meu deus!, o que é isso?

Refugiou-se na cozinha. O coração saindo pela boca. Até a dor de cabeça pareceu sumir. Tremendo, tomou outro copo de água e procurou recuperar o controle. Respirou fundo várias vezes antes de tomar coragem de voltar até a porta do quarto.

O corpo estava lá. Quando pulou da cama, ele arrastou parte do lençol e agora era possível ver os hematomas na garganta muito branca da moça. Ela tinha sido estrangulada, mas quem teria feito isso? Ele?

Sentiu calafrios por todo o corpo. Quanto tempo dormira com aquele cadáver?

Voltou ao refúgio da cozinha. Não podia ter sido ele. O que era isso agora? Um psicopata de filme americano? Não, ele nunca faria algo assim. Nunca.

Um hipótese brilhou em sua mente confusa. Teriam vindo em três. Ele, morto de bêbado, devia ter apagado. As duas outras pessoas se desentenderam por algum motivo e uma matou a outra e fugiu, deixando ele dormindo com o cadáver.

Correu esperançoso para a sala, mas a porta continuava fechada e com as travas antifurto passadas. Era impossível alguém ter saído por ali e, do sexto andar, também era impossível fugir pelas janelas.

Caralho! Então fora ele mesmo que matara aquela moça? Maldita amnésia! Sentiu novos calafrios ao imaginar se a amnésia não seria parte da própria psicopatia. Não é assim que acontece nos filmes americanos?

Puta merda! Eu tou fudido, meu deus! O que fazer? Ligar pra polícia? Chamar algum amigo muito próximo e dar fim ao corpo? A última hipótese lhe pareceu sensata, mas não podia fazer isso. Não era nenhum criminoso. No máximo, estava doente. Profundamente doente.

E daí? Podia não ser preso, mas a ideia de passar o resto da vida internado em um manicômio judiciário era apavorante. Tentou afastar esses pensamentos.

Era um pesadelo. Com certeza, um maldito pesadelo causado pelo álcool. Alucinação alcoólica. Isso não estava acontecendo. Era só um pesadelo.

Foi até a varanda e olhou a paisagem ofuscante de sol. Lá embaixo a vida corria como sempre. Pessoas caminhavam, carros circulavam.

Resolveu voltar ao quarto. Eu vou olhar e a minha cama vai estar vazia. Como sempre esteve. Hoje mesmo vou procurar um médico. E nunca mais vou beber na vida. Eu juro. Nunca mais.

Ao chegar ao quarto, a moça continuava na sua cama. Os peitos muito brancos, a pele com um leve tom de azul e as marcas escuras no pescoço. Caiu num choro convulsivo. Não!, meu deus!, não! Isso não é verdade! Me faça acordar desse sonho monstruoso, por favor, meu deus! Eu não matei ninguém. Eu nunca mataria alguém. Por que, meu deus, por que isso está acontecendo?

Chorou sentado na cozinha. A cabeça entre as mãos. O corpo todo tremendo.

Ficou ali muito tempo, até que o choro e o tempo fizeram serenar sua alma. E resolveu fazer a única coisa que era certo fazer: ligar para um advogado e em seguida para a polícia.

Não sabia por onde andava o celular. Tinha que usar o fixo, que ficava na mesinha ao lado da cama. Vencendo a repulsa, sentou-se na cama e começou a teclar o número de um advogado amigo seu. Mas nunca conseguia terminar o número. Quando chegava aos últimos quatro dígitos, era como se tivesse voltado ao início e sempre havia mais quatro dígitos para teclar. Começou a se desesperar. Anotou o número num papel pra ter certeza que estava teclando certo, mas isso também não adiantou. Sempre faltavam quatro dígitos, embora já houvesse teclado dezenas deles.

Quando estava a ponto de ter um ataque, o telefone começou a chamar. O susto foi enorme e ele deixou cair o aparelho.

Acordou com aquele toque horrível do telefone. Sempre esquecia de baixar o volume. Sempre acordava em pânico com o toque.

Levantou-se apavorado. Estava ensopado de suor, tremendo, taquicárdico, mas não havia ninguém na sua cama. Tinha tido um maldito pesadelo. Quase teve uma crise de choro ao se dar conta.

Cheio de calafrios, foi até a cozinha e bebeu um copo d'água. Lembrou-se da história da trombose e bebeu mais um copo. Na nuca, aquela dorzinha de cabeça latejava. Voltou pra cama para dormir aquela horinha mais que ainda faltava.

Quando ela acordou, perto do meio-dia, a cabeça latejava e estava doida pra fazer xixi. Cambaleou até o banheiro e sentou no vaso. Enquanto urinava, lembrou-se de um sonho maluco, em que estava morta na cama de um cara.

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